sábado, 13 de janeiro de 2018

Mortes-em-vida

Há um morrer e renascer constante na vida. Procure aprender essa arte.

Pode haver poesia em suas mortes-em-vida, apesar de doloridas, como devem ser. A contemplação dos mistérios do mundo e o embasbacar-se com a beleza oculta em fatos insuportáveis aos olhos de quem não sabe a importância do deixar ir.

Seu peito vai ser atingido no meio e haverá sangue, muito sangue. Paúra num primeiro momento para, logo em seguida, perceber que são apenas excessos sendo drenados para que o corpo possa renovar as próprias forças.

Observe todos os cortes na sua pele e perceba que não havia como sobreviver por mais tempo naquelas condições. Viver assim por quê?! A sabedoria da vida é imensa e ela prefere descartar o inútil a permitir que a energia vital seja desperdiçada sustentando um organismo estropiado, caduco.

O último suspiro se prolongará por muito tempo, mais do que julgam necessário num primeiro momento. Haverá um luto, seu e dos seus. Todos sentirão a sua falta e se julgarão impotentes diante da sua paralisia. Isso frustra. Tenha paciência com eles. E você, entediar-se-á diante da letargia que uma cabeça acelerada e paranoica pode provocar. Paciência consigo também, por gentileza.

E há também os vermes. Eles chegarão para roer cada pedaço seu. Assusta, confesso. A pele enrugada por tantos solavancos, as unhas quebradas pelas batalhas e que perderam a capacidade de se regenerar, os órgãos enegrecidos e purulentos por feridas reabertas tantas vezes em vida, o miolo mole e cansado. Tudo vai virar comida enquanto constata que não há força em seus dedos para dar um peteleco naquelas criaturas miúdas que se servem de você sem cerimônia.

Paciência, novamente. Depois de cada mordiscada em suas entranhas, o novo surge. Assim, instantâneo, ou poucos minutos depois. O coração pode custar um pouco mais, então não se assuste com o oco no peito. E o cérebro vai entrar em curto circuito enquanto devorado, podendo haver apagões. Troca de fiação gera esse caos temporário.

Por sua vontade tudo continuaria da mesma forma de sempre: pus, marcas, feridas, miolos moles. Mas a vida não obsta da sua missão e vai impor muitas mortes em sua vida! É assim que funciona. Acostume-se a isso.

O novo surge quando o velho dá lugar a ele. Não antes, não quando queremos. E sempre haverá o que aprender e o que deixar pra trás.

É preciso ter a coragem de entregar-se aos ciclos e crer que a vida é mais sábia do que nós, superficiais e medrosos demais para promover, por vontade própria, todas as remoções de tecido morto necessárias.

Podemos nos agarrar à massa podre por medo da dor. É possível. Já encontrei muita gente impregnada do cheiro do chorume, em suas roupas, palavras, pensamentos, sentimentos, ações. Insuportável. Dignas de pena.

Um morto em vida resseca o que encontra pela frente. E sua visão torna-se turva. É muito grave. Gradativamente, perde a capacidade de reconhecer o amor nos detalhes e deixa de confiar. Triste.

Por isso, nos entreguemos. Confiemos. Vivamos a beleza dos ciclos de morte-em-vida. É assim que tudo se renova no mundo, e há de ser assim em nós também.